Por Chiara Santi
O diagnóstico de Guy Debord durante a década de 1960, assusta por continuar sendo muito atual. Com a difusão de alguns avanços nos meios das telecomunicações, inicia-se uma grande divulgação das imagens por meio da televisão. Com esse cenário em mente, Debord passou a observar a larga influência que a cultura da imagem e da representação passou a exercer na percepção das pessoas sobre a realidade. Uma nova concepção do real estava sendo formada, a criação da Sociedade do Espetáculo. Em vez de afirmar a realidade tal como ela é, o indivíduo contemporâneo relaciona-se com a vida a partir da categoria que envolve as condições do espetáculo. Quer dizer, de uma forma distante, passiva e ilusória. Tudo o que se efetiva é uma imagem aparente do que a vida realmente é em sua essência, o real foi coisificado em uma imagem representativa.
Para citar um exemplo, basta conceber o alcance que as redes sociais possuem na vida das pessoas. Se alguém por acaso perder sua conta no Instagram, talvez esqueça completamente o que significa viver uma vida sem fazer uma publicação sobre alguma coisa. Como saber se eu estou sendo aceita e validada, se eu não postar uma foto ganhando vários “amei”? Como Debord diz “À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho se torna necessário. O espetáculo é o sonho mau da sociedade moderna aprisionada, que só expressa afinal o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guarda desse sono” (p.19). Eis aí um questionamento e um exemplo tácito para o alcance dessa cultura que já se encontra fundada na concepção do espetáculo, se eu não fizer uma representação de cada instante da vida na realidade virtual, talvez ela não exista de fato.
Debord cita como um agravante para a criação da sociedade do espetáculo, a divisão social do trabalho e a separação das pessoas entre classes. Consequência da intensificação do processo de alienação pelo trabalho massificado das novas indústrias, associando-se a uma leitura marxista da economia. O palco da Sociedade do Espetáculo é o sistema capitalista, que se retroalimenta com a sucessão contínua de isolamento entre as pessoas, lançando produtos e eletrônicos que estimulam a fantasia do desejo e da autorrealização. As pessoas criam sua própria realidade fantástica e se isolam dentro de seus muros. As propagandas incentivam esse cenário criando necessidades e representações de um estilo de vida forjado pelo sistema econômico. Como, por exemplo, a típica família do comercial de manteiga que aparece na televisão, se você não tem uma, você deveria ter. A produção e o consumo de mercadorias assumiram o controle da existência.
O ser humano não vive mais de acordo com as necessidades básicas da sua própria subsistência, mas para consumir produtos muito além do necessário. E quanto mais se amplia, mais ilhas sociais o capitalismo gera, vendendo um estilo de vida inalcançável para quem não se rendeu às regras do jogo das revoluções industriais. A vida se encaminha para uma grande banalidade em que se vende uma falsa liberdade de escolha, pois tudo já se encontra determinado pelas leis do consumo, da imagem e da representação de uma falsa vida. Se as pessoas não acordarem para a realidade desse espetáculo que as controlam cegamente, elas seguirão exercendo a função de marionetes, cumprindo fielmente seu papel na peça da Sociedade do Espetáculo. Para reforçar essa reflexão, indico assistir o trecho do filme a seguir: O guia pervertido da IDEOLOGIA | Slavoj Žižek [trecho] (youtube.com). No trecho citado, Zizek comenta sobre o filme no qual o personagem consegue um par de óculos que permite que ele veja o que está por trás das propagandas do estilo de vida capitalista. O personagem percebe o quanto tudo é forjado de maneira ilusória, e que a grande maioria das pessoas vivem de acordo com as aparências dessa realidade, segundo Guy Debord, isso demonstra a imagem do espetáculo efetivada. Para entender o quanto a realidade das coisas chegou nesse nível, Debord realiza uma pesquisa história das transformações econômicas ao longo do desenvolvimento da humanidade.
Por meio de uma profunda análise histórica dos movimentos sociais que representaram uma oposição direta ao modelo burguês capitalista, Guy Debord percebe uma grande separação entre o campo da teoria e o da ação prática, e diz que a burguesia cresce e se expande porque dominou os meios possíveis do desenvolvimento por meio do campo da ação prática. A luta que parte em defesa do proletário só alcançaria o sucesso se conseguisse difundir a consciência por trás da massa de manobra dos meios de produção. Porém, Debord percebe uma grande desilusão no campo do movimento ideológico social que procura repensar o modo de produção capitalista, ao longo da história os movimentos sociais tornaram-se tão inconscientes e autoritários quanto o modelo que eles procuravam reformular.
Todo o modelo capitalista e a divisão social do trabalho fazem Guy Debord perceber que a organização do trabalho englobou o tempo de vida em uma percepção cíclica da história humana. Como ele diz “o retorno temporal a lugares semelhantes passa a ser o puro retorno do tempo em um mesmo lugar, a repetição de uma série de gestos”. Principalmente quando se pensa no tempo da agricultura. Com o decorrer do tempo, através dos avanços políticos e da complexidade da técnica, a narrativa do tempo e da história passou a pertencer as classes dominantes, deixando quem não é pertencente dela, à margem da percepção da história e de suas transformações. Há uma prevalência da inconsciência a despeito do desenvolvimento da realidade das coisas e da própria substância que organiza a vida do jeito que ela se apresenta. Debord diz sobre isso:
A história presente em toda a profundeza da sociedade tende a perder-se na superfície. O triunfo do tempo irreversível é também sua metamorfose em tempo das coisas, porque a arma de sua vitória foi precisamente a produção em série dos objetos, segundo as leis da mercadoria. O principal produto que o desenvolvimento econômico faz passar da raridade luxuosa para o consumo corrente é, portanto, a história, mas apenas como movimento abstrato das coisas, que domina todo uso qualitativo da vida. O tempo cíclico anterior havia sustentado uma parte crescente de tempo histórico vivido por indivíduos e grupos; agora, a dominação do tempo irreversível da produção vai tender a eliminar socialmente esse tempo vivido. (DEBORD,1997, p.99, tradução Estela dos Santos Abreu)
O tempo da mercadoria opera agora em um nível mundial, o espetáculo da produção de imagens e coisas tornou-se o estilo de vida universal de todos, no qual grande parte da humanidade permanecesse alienada da causa que movimenta os efeitos sobre ela mesma. É um tempo particular que atende aos interesses da ordem do mercado. Dessa forma, o tempo do consumo e do espetáculo roubam a percepção cíclica da natureza e reorganizam a vida humana sob o aspecto da lógica da produção, no qual o tempo de vida se mescla com o tempo dedicado ao trabalho, em que a própria vida se configura em viver para trabalhar e o tempo livre concedido, uma espécie de recompensa pelo trabalho realizado.
Outro fator que também vai sofrer com as modificações da lógica do espetáculo será a percepção do espaço. Da mesma forma que o tempo sofreu uma alienação, o espaço também será expandido dentro dos limites de um isolamento em conjunto. Para explicar esse aspecto, Debord cita os condomínios habitacionais que organizam as pessoas próximas umas das outras, porém, cada uma permanece isolada em seu próprio lugar e limite, sendo preenchidas pelas imagens da televisão. E, atualmente, com o avanço da tecnologia, a internet e os smarthphones, tomam conta de todo o aspecto do espetáculo 24h por dia, aumentando cada vez mais a noção do isolamento das pessoas em conjunto. Fazendo com que todas as pessoas permaneçam presas na ilusão da vida na tela virtual.
Somado a esse cenário de isolamento, conta-se ainda com o avanço dessa nova organização do espaço, através da destruição em massa do meio rural para a expansão cada vez maior do espaço urbano, das grandes cidades que crescem tanto que daqui a pouco irão consumir a si mesmas por meio de uma autodestruição. A relação harmoniosa do campo com a cidade permitia uma permanência da história cristalizada da civilização, com ênfase em sua memória e restruturação, enquanto na mentalidade do espetáculo o material disponível para a preservação da história é dissolvido antes mesmo de acontecer.
Outra fonte de preservação da história se encontra suprimida pela ampla negação da cultura enquanto produto dos feitos humanos. Na estrutura do espetáculo, a arte é produzida para ser esquecida e descartável. Não há nada que desafie o tempo com a eternidade, instaurando-se como marco temporal na história. A cultura do espetáculo e da arte produzida em seu meio, trata sua produção como se todos fossem meros espectadores, através de uma linguagem que não comunica absolutamente nada além da reprodução da vida em seu contexto de ilusão.
Porém, Debord não é de todo pessimista com relação a propor uma superação dessa estrutura de alienação em massa das pessoas por meio da lógica do mercado capitalista. Ele acredita na tomada de consciência da classe dos trabalhadores, segundo ele, os únicos que são capazes de contar a verdadeira história universal da humanidade, superando a ideologia que coloca todos para dormirem em um sono profundo. Debord diz que a verdadeira revolução espera o momento certo para agir enquanto permanece desperta e consciente, por trás do mecanismo de ilusão do espetáculo. O único problema é o lento e demorado despertar de todas as pessoas envolvidas na configuração dessa falsa realidade.
Considerações Finais
Após passado algum tempo desde que Guy Debord publicou sua obra, percebo, com certo horror, que talvez o espetáculo seja inescapável. Acredito no despertar da consciência individual e no poder de cada pessoa, no seu particular, em conseguir libertar a si mesma na medida que for possível.
Despertemos!
Referências Bibliográficas
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: Comentários a sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
Recomendação
Filme documentário inspirado na obra de Guy Debord: