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O surgimento da luta pelos direitos das mulheres na obra de Angela Davis

Foto do escritor: Beija-Flor EditorialBeija-Flor Editorial



Por Chiara Santi


Angela Davis é uma filósofa, ativista e escritora norte-americana, conhecida por sua luta pelos direitos civis e justiça racial. Nascida em 1944, tornou-se uma figura importante no movimento Pantera Negra e no Partido Comunista dos EUA. Em seu livro Mulheres, Raça e Classe Angela Davis trata a respeito de uma leitura que faz uma interconexão entre esses conceitos. Percebendo como a condição dos escravizados serviu para denunciar uma segunda forma de opressão contra as mulheres, trazendo para o debate a diferença de ocupar uma classe privilegiada em detrimento daquela que foi desumanizada desde a origem.

Davis começa analisando as origens do movimento escravista estadunidense e como, a partir dele, pode-se extrair uma noção do papel das mulheres e de sua contribuição para a sociedade. Primeiramente, a autora destaca a ausência de trabalhos sobre o tema das mulheres escravizadas. No entanto, com a bibliografia disponível, ela conclui que grande parte da leitura feita sobre a mão de obra escravizada as entendia apenas como propriedade, como forças de unidade de trabalho.

Assim, as mulheres também eram desprovidas de gênero, vistas apenas como força de trabalho compulsório, realizando as mesmas tarefas braçais que os homens. Se tivessem filhos, não eram reconhecidas como mães, mas colocadas no papel de reprodutoras, capazes de multiplicar a mão de obra no futuro. Muitas vezes, seus filhos eram arrancados de seus cuidados e vendidos logo em seguida como escravizados. Vigorava a lei que determinava que os filhos nascidos de pessoas escravizadas estavam na mesma condição de animais (Davis, 2016, p. 20).

Como consequência natural, surgiu na comunidade negra uma união baseada no afeto e no companheirismo contra o opressor, expressa na harmonia dos papéis sociais exercidos por homens e mulheres, sem que um se sobrepusesse ao outro. Isso fomentou uma série de levantes, greves e resistências contra os senhores de escravizados. Algumas fugas em busca da liberdade foram bem-sucedidas, enquanto outras foram frustradas pela recaptura e pela posterior punição severa, como açoites e outras mutilações. Nesse contexto, as mulheres escravizadas eram lembradas de sua condição de fêmeas, sofrendo uma dupla violência que seus companheiros homens não sofriam: o estupro. Angela Davis (2016) analisa essa questão:

“Enquanto as punições mais violentas impostas aos homens consistiam em açoitamentos e mutilações, as mulheres eram açoitadas, mutiladas e estupradas. O estupro, na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprietário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na condição de trabalhadoras.” (Davis, 2016, p. 20)

A extrema violência e a atitude dos escravizados de jamais aceitarem passivamente sua condição serviram como combustível para o movimento antiescravagista. Angela Davis cita o importante romance A Cabana do Pai Tomás, que ajudou a disseminar e sensibilizar o lado opressor sobre a desumanização das pessoas escravizadas, por meio da luta da protagonista do romance, uma mãe em sofrimento pela perda de seu filho. Muitas pessoas brancas, principalmente mulheres da classe média alta, passaram a se solidarizar mais com a causa antiescravagista.

Um fator histórico também contribuiu para esse processo: com a chegada da industrialização, muitas mulheres perderam seu espaço na economia doméstica baseada na manufatura, o que as restringiu ainda mais ao ambiente doméstico, fortalecendo o ideal clássico da mulher como esposa, mãe e dona do lar. Esse afastamento progressivo reduziu sua influência política, tornando sua voz menos relevante no debate público dominado pelos homens.

Esse cenário começou a mudar consideravelmente quando mulheres brancas da classe alta passaram a se envolver ativamente na luta contra a escravidão. Elas assumiram atitudes concretas, como organizar comícios, petições, grupos de resgate e auxiliar na fuga de pessoas escravizadas. No entanto, ao ocuparem esse espaço de porta-voz e defesa do movimento antiescravagista, sofreram retaliações e perseguições por assumirem um papel que a sociedade não considerava adequado para as mulheres: o direito a uma voz política e a participação nos debates públicos. Davis (2016) observa:

“O movimento antiescravagista oferecia às mulheres de classe média uma oportunidade de provar seu valor de acordo com parâmetros que não estavam ligados a seus papéis como esposas e mães. Nesse sentido, a campanha abolicionista era um espaço em que elas poderiam ser valorizadas por seu trabalho concreto. De fato, seu desenvolvimento político na luta contra a escravidão talvez tenha sido tão intenso, apaixonado e total porque podiam vivenciar uma estimulante alternativa à sua vida doméstica. E estavam resistindo a uma opressão que se assemelhava àquela que elas mesmas viviam. Além disso, no interior do movimento antiescravagista, aprenderam a desafiar a supremacia masculina.” (Davis, 2016, p. 51)

As mulheres brancas tornaram-se aliadas importantes e influentes contra os escravistas, especialmente ao perceberem que, apesar de suas diferenças, compartilhavam com as pessoas negras uma condição de menosprezo dentro da sociedade. A experiência coletada por essas mulheres na luta contra a escravidão serviu de força e incentivo para que essas mesmas mulheres anos mais tarde tomassem parte do movimento em que elas seriam as protagonistas na busca por direitos políticos. Mas nem tudo haveria de ser tão simples e unívoco. Mesmo lutando pelos direitos abolicionistas e pedindo o fim da escravidão, as mulheres brancas demonstravam resistência em aceitar a participação das mulheres negras, ex-escravizadas ou livres, no interior de seu movimento em busca do direito ao voto e do reconhecimento de sua voz política.

Angela Davis ressalta que a única figura masculina que apoiou verdadeiramente o movimento das mulheres foi o ex-escravizado Frederick Douglass. Ele ocupava uma posição de poder e destaque e argumentava a favor dos direitos das mulheres. Seu apoio foi crucial para ajudar a consolidar a relevância política do movimento, mesmo enfrentando retaliação e boicote da mídia. Ainda assim, Douglass continuou apoiando a participação das mulheres.

Dentro da própria organização da luta pelos direitos das mulheres, havia discriminação e desigualdade entre as mulheres operárias e as mulheres negras em relação às mulheres brancas burguesas. A luta das operárias foi fundamental para reivindicar transformações trabalhistas para todos os trabalhadores, percebendo-se que as mulheres operárias sofriam dupla opressão: recebiam salários menores e trabalhavam em condições precárias apenas por serem mulheres. As mulheres negras, por sua vez, enfrentavam o apagamento devido ao preconceito racial, não sendo sequer consideradas "mulheres de verdade". É nesse contexto que surge o poderoso discurso de Sojourner Truth, “Não sou eu uma mulher?”, no qual ela exerceu uma oratória brilhante contra as vaias dos homens e o silenciamento imposto pelas mulheres brancas durante o comício pelos direitos das mulheres. Davis (2016) comenta:

“Nem todas as mulheres eram brancas ou desfrutavam do conforto material da classe média e da burguesia. Sojouner Truth era negra – uma ex-escrava -, mas não era menos mulher do que qualquer uma de suas irmãs brancas na convenção. O fato de sua raça e de sua situação econômica serem diferentes daquelas das demais não anulava sua condição de mulher. E, como mulher negra, sua reivindicação por direitos iguais não era menos legítima do que a das mulheres brancas de classe média. Em uma convenção nacional de mulheres realizada dois anos depois, ela ainda lutava contra os esforços que tentavam impedi-la de falar.” (Davis, 2016, p. 73)

A resistência política e a coragem de Sojourner Truth foram fundamentais para que a condição da mulher negra não caísse no esquecimento dentro do movimento pelos direitos políticos das mulheres. No mesmo contexto histórico, eclode a Guerra Civil nos Estados Unidos, com a região Sul se opondo à região Norte, principalmente devido ao desacordo sobre a abolição da mão de obra escravizada. O conflito evidenciou a extrema violência e perseguição que a população negra ainda enfrentaria, sofrendo retaliação e boicote de ambos os lados. Embora houvesse resistência à participação dos negros na sociedade, assim como dos operários e das mulheres — tanto brancas quanto negras —, a ativista abolicionista e defensora dos direitos das mulheres, Angelina Grimké, realizou um importante discurso intitulado “Discurso para os soldados da nossa segunda revolução”. Nele, afirmou que, enquanto não houvesse uma unificação e a garantia dos direitos civis para todas as instâncias da sociedade, com o reconhecimento integral de sua humanidade, não seria possível chamar de "terra livre" um país que defendia a escravidão e a desigualdade. Afinal, essa liberdade contemplava apenas uma pequena parcela de homens brancos financeiramente abastados.

Os conflitos estavam longe de acabar. Mesmo com o término da Guerra Civil, a violência contra o povo negro continuou. Além disso, os movimentos abolicionistas e pelos direitos das mulheres permaneceram divididos internamente, atravessados pelo racismo e pela supremacia do homem branco. Mulheres brancas argumentavam que, se os homens negros conquistassem o direito ao voto antes delas, não haveria mais nenhuma chance de emancipação feminina. Essa posição é controversa, pois, no início, elas só conseguiram voz política graças à sua dedicação à causa abolicionista.

Frederick Douglass, grande aliado das mulheres, também defendia que o direito ao voto dos negros deveria ser priorizado em relação ao das mulheres, considerando a necessidade de reparação política, econômica e social diante da violência constante que os homens negros e todo o seu povo sofriam nas ruas, atacados por gangues racistas. Ele argumentava que as mulheres brancas possuíam privilégios de classe e cor que os homens negros não tinham. Para Douglass, era urgente garantir, perante a lei, o respeito e o direito político à vida do homem negro, enquanto a luta pelos direitos das mulheres deveria vir em segundo plano. Essa postura contribuiu para o fortalecimento de uma mentalidade racista dentro do movimento sufragista feminino. E isso, para a realidade das mulheres negras, significava um duplo apagamento.

Na prática, a emancipação da mulher negra não ocorreu por completo. Elas continuaram exercendo, em sua maioria, trabalhos domésticos tanto no campo quanto na cidade, enfrentando os mesmos tipos de preconceito, desvalorização e exploração dos tempos da escravidão. Trabalhavam em condições precárias e por longas horas, sem ter direitos básicos garantidos. Caso tentassem seguir outras profissões, como a de professora, eram expulsas devido ao preconceito racial. O mesmo acontecia com meninas negras, impedidas de estudar com o início da segregação racial nos Estados Unidos. A presença de uma mulher negra em um espaço "destinado" aos brancos só era justificada se fosse para exercer a função de trabalhadora doméstica, geralmente acompanhando crianças brancas. O trabalho doméstico demorou a ser defendido e organizado em sindicatos, enquanto feministas brancas da elite sequer percebiam a exploração que impunham às mulheres negras nos contratos abusivos desse tipo de serviço. A situação das mulheres negras empregadas domésticas só começou a mudar no início da Segunda Guerra Mundial, quando a necessidade de mão de obra feminina nas indústrias aumentou devido à ausência dos homens, que foram recrutados para o serviço militar obrigatório.

Embora com muita resistência, o direito à educação para a população negra no período pós-emancipação foi uma grande luta contra o boicote de gangues opositoras à liberdade dos negros, que também dificultavam o acesso ao direito à terra e ao poder político do voto. No caso das mulheres, uma importante e corajosa ativista lutou para fundar uma faculdade de formação para professoras negras: seu nome era Myrtilla Miner. Enfrentando inúmeros desafios, Myrtilla seguiu adiante, atendendo ao desejo de aprendizado que toda a população negra pós-emancipação exalava. Após sentirem os ventos da liberdade, queriam continuar lutando por sua permanência, garantindo todos os seus direitos. A educação era o principal deles, pois ousava libertar, de verdade, o corpo, a mente e o espírito das pessoas ex-escravizadas. Além disso, permitia a tomada de consciência de que também eram dignas de respeito por serem humanas e de que não havia nada na natureza que comprovasse sua inferioridade — a não ser o ódio e a ignorância de pessoas cruéis que se colocavam no centro do universo apenas por serem brancas. A educação promovida por Miner, pautada em ideais antirracistas e abolicionistas, ajudou a libertar integralmente a mente de boa parte da população negra atendida em sua escola e faculdade, preparando-a para a luta que ainda persistiria pela conquista do direito à terra e ao voto.

 

Considerações Finais

Angela Davis narra, com precisão, a incansável luta dos negros por seus direitos políticos, trazendo para essa análise histórica a importante questão de gênero. Ela lança luz sobre a luta das mulheres negras por direitos políticos, evidenciando como, ao longo de cada capítulo, acompanhamos a busca gradual por reconhecimento político após a emancipação e a tentativa de associação com mulheres brancas na construção de uma aliança política pelo direito ao voto.

Dentro desse movimento, torna-se nítida a discrepância entre gênero, raça e classe. A luta das mulheres operárias, por exemplo, só ganhou visibilidade após o incêndio que matou cerca de 146 trabalhadoras em uma fábrica, consequência das precárias condições de trabalho contra as quais elas já vinham se manifestando há tempos. Essa era uma realidade desconhecida pelas mulheres da elite — esposas de homens financeiramente abastados —, que, no tédio de sua vida doméstica, se dedicavam à luta sufragista sem considerar outras questões ainda mais urgentes, como a própria sobrevivência das mulheres trabalhadoras.

Dessa forma, Davis denuncia um novo inimigo comum, que se consolidava na forma de um poder político e econômico impulsionado pela crescente organização do sistema capitalista e pelo domínio dos meios de produção. Quando o direito ao voto foi garantido às mulheres em 1919 nos Estados Unidos, as mulheres negras, ao tentarem exercê-lo, foram impedidas de votar nas urnas. Assim, a luta por visibilidade e direitos políticos jamais cessou na vida das mulheres negras norte-americanas.

Há um tom amargo no relato histórico de Angela Davis, que denuncia a violência e a crueldade de um sistema político e econômico estruturado sobre bases sexistas e racistas. Mesmo diante de uma luta incansável, esse sistema permaneceu irredutível à necessidade de uma transformação radical. A própria Angela Davis se configura como um testemunho vivo da continuidade dessa luta. Filiada do Partido Comunista e integrante dos Panteras Negras, foi uma ativista fundamental na luta pelos direitos políticos da comunidade negra nos anos 1970 e segue atuante até os dias atuais.

 

Referências Bibliográficas

 

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

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